segunda-feira, 2 de agosto de 2010

CARTA DE UMA PROFESSORA AOS GESTORES PÚBLICOS DO
MUNICÍPIO DE ARACAJU

Aracaju - SE, 08 de fevereiro do ano 2010.

“Marco Pólo descreve uma ponte, pedra por pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – Pergunta Kublai Khan. - A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco, mas pela curva do arco que elas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio refletindo e depois acrescenta: Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Pólo responde: Sem pedras, o arco não existe”
(Ítalo Calvino)


DESTINATÁRIOS: Chefe do Executivo Municipal – Prefeito Edvaldo Nogueira; Secretária de Educação – Professora Mestra Teresa Cristina C. da Graça; Diretor de Recurso Humano da SEMED – Professor Adelmo Menezes; Direção Executiva do SINDIPEMA – Presidenta Professora Maria Elba Silva; Conselho Municipal de Educação; Conselho Escolar; Parlamentares; Ministério Público – Curadoria da Educação e Imprensa escrita no Estado de Sergipe.

Sou docente concursada, em exercício na Escola Municipal de Educação Infantil Profa. Áurea Melo Zamor, do Sistema de Ensino de Aracaju e venho expressar alguns sentimentos que têm afetado consideravelmente o meu exercício profissional. Este texto é escrito na primeira pessoa, porém estou certa de que manifesta angústias que se acumulam dia após dia, frustrações e grandes decepções na carreira profissional, por parte da imensa maioria do Magistério Público.

Na tentava de provocar uma reflexão começo esse texto/documento afirmando que: O “Direito de Aprender” deve ter como requisito primeiro, o “Direito de Ensinar”. Quando este não é tratado com o respectivo cuidado e respeito, conseqüentemente compromete o “Direito de Aprender”. É o meu ponto de vista.
A quem cabe garantir o “Direito de Aprender”? A quem cabe garantir o “Direito de Ensinar”? Que relação guarda esses direitos? Que elementos os aproxima ou os afasta?

Em função da instituição do Ensino Fundamental de 09 anos, a escolaridade obrigatória passou a ser a partir dos 06 anos de idade. Essa nova conjuntura educacional gerou também uma nova situação para escola de educação infantil, visto que esta desde o advento da LDB vigente, atende crianças na faixa etária dos 04 aos 06 anos. Até o ano letivo 2009 havia quatro turmas de crianças de 06 anos na Escola Áurea Zamor. Durante todo o segundo semestre/2009 a Coordenação da Escola supracitada fez consultas formal e verbal a Secretaria de Educação sobre como efetuar a matrícula para o ano 2010. Isto é, se deveria ou não efetuar matrícula de crianças de 06 anos de idade. Essa sempre foi uma questão do meu interesse, enquanto professora da escola. Nesse sentido busquei até o encerramento do ano letivo (janeiro/2010), informação a respeito do assunto. Destaco também que a maioria das mães cujas crianças foram atendidas pela escola no ano 2009, buscou por diversas vezes esta informação junto a Coordenação, que até o encerramento do ano letivo não teve resposta efetiva para as interessadas. O resultado dessa “confusão” já apareceu na escola agora no inicío do ano letivo 2010: A escola, mesmo gozando de bom conceito entre as mães, perdeu na matrícula em todas as faixas-etárias e deixou de matricular duas turmas de crianças de 06 anos, pois, a resposta da SEMED somente chegou após as mães deixarem de freqüentar a escola diariamente, quando iam buscar as suas crianças no final do expediente escolar de cada turno (manhã e tarde).
Diante do exposto, encontro-me como professora, na seguinte situação: Impedida de exercer a minha atividade profissional, prejudicada no meu Direito de Ensinar, pelo menos na escola que já sou lotada e na qual quero continuar trabalhando. A seguir, explicarei. Fui chamada pela Coordenação da Escola a participar de uma reunião no último dia 04, inclusive com a presença de três profissionais que compõem a equipe pedagógica da SEMED, a convite da Coordenação da escola. Foi uma conversa cordial, na qual se falou da proposta da Secretaria para implantação no Sistema Municipal, do Projeto Ciclos de Alfabetização. Foi falado ainda que a EMEI Áurea Zamor foi “eleita” para fazer parte da “experiência piloto” no ano em curso. Observo que nenhum profissional da escola foi chamado pela SEMED a participar da construção do referido projeto, apenas se fez a comunicação verbal (que a EMEI Áurea Zamor integrará o Projeto Piloto em 2010). Convém perguntar: Que concepção de “Gestão Democrática” baliza as Ações e a Política Educacional do Município de Aracaju? A que serve o Conselho deliberativo da escola?
Após a saída dos representantes da SEMED, deu-se continuidade aos trabalhos. A Coordenadora Pedagógica passou a informar a turma de cada professora, e alguns casos de afastamento por licença médica, visto que o ano letivo 2010 teria início no dia 08 de fevereiro, o que de fato ocorreu. Foi exatamente naquele momento da mencionada reunião que fui comunicada verbalmente que “não tem turma para a professora Sandra, pois NÃO houve matrícula” Desde que cheguei à escola, sou professora na turma de 06 anos no turno matutino. Fiquei assustada com a “naturalidade aparente” com que a questão foi abordada na escola. Porque não fui comunicada com antecedência, ainda na vigência do período de transferência estabelecido pelo Recurso Humano/SEMED? O que significa dizer “Não houve matrícula”? Para onde foram todas as crianças de 06 anos de idade que residem em várias comunidades situadas no entorno do bairro da escola? É sabido que a região (Conjunto Orlando Dantas) na qual a EMEI Áurea Zamor está localizada, tem sido “cercada” por moradias de classe média, que não matricula os filhos na escola pública. Todavia, há também no seu entorno muitas áreas de ocupação nas quais as comunidades possuem significativo número de crianças na faixa-etária dos 04 aos 06 anos. Para quais escolas essas crianças foram? Será que estão na escola? E o Direito de Aprender? Quais as ações concretas da SEMED para reverter esse quadro? Recuso-me a aceitar que questão tão séria caia em “vala comum” e seja “naturalizada”!
Não parece extremamente contraditório que se veja na mídia (escrita, televisiva, falada) tanto esforço da sociedade civil, tantas campanhas e “chamadas” dos governantes (e muito dinheiro público investido): “Todos pela Educação”; “Direito de Aprender” e etc. em favor da educação escolar, e que se localizem escolas públicas com salas de aula vazias? Inclusive de educação infantil (o caso da EMEI aqui apontada). Caso alguém queira confrontar a estatística atual do analfabetismo no Estado de Sergipe, encontrará mais fundamentos para enxergar o volume dessa contradição. O que está acontecendo em Sergipe? O que está acontecendo na capital, Aracaju? As famílias não querem educação escolar para os seus filhos?
A sensação que me invade nessa conjuntura é que a educação continua sendo tratada enquanto uma “abstração” e não enquanto direito social imprescindível a todos e um bem cultural sagrado, de elevado nível de complexidade.
Ressalto outro aspecto nesse longo, porém, necessário relato: Quem é docente costuma, ao encerrar um ano de atividade laboral, planejar, reorganizar a vida pessoal para o ano seguinte, especialmente quem é mulher, quem é mãe de criança pequena, visando conciliar a jornada profissional com “as jornadas da vida pessoal”. Isso é importante para se estar bem fisicamente e emocionalmente na retomada do trabalho, pois se lida com pessoas, e no meu caso, com crianças em formação de personalidade (matutino) e adultos (noturno). A atividade docente é comprovadamente muito desgastante, visto que não se limita à interação pedagógica professor-aluno na sala de aula, mas tem desdobramentos diversos que acompanham o profissional da escola para casa e vice-versa. Estou certa de que isto que agora destaco não é novidade. Todos são conhecedores dos “ossos do ofício” docente, aponto esses elementos com a intenção de chamar a atenção dos Gestores Públicos lembrando que toda diretriz que interfere diretamente no cotidiano da escola e na vida do profissional da educação precisa ser apresentada com responsabilidade, compromisso e principalmente participação efetiva de todas as partes interessadas. Isto é para mim, a tradução, a “encarnação” do legítimo e árduo exercício democrático e do respeito ao profissional e a toda comunidade escolar.

Organizei a minha vida pessoal para trabalhar no ano 2010 na EMEI Áurea Melo Zamor, no turno matutino. Ao retornar a escola sou impedida de exercer o meu trabalho, pois não existem alunos, existe somente a sala de aula vazia (nos dois turnos – manhã e tarde) Como os senhores pensam que estou me sentindo? Cadê a tão cantada “valorização profissional do magistério”? Solicito que cada um dos senhores de dispa da força/poder dos cargos que ora ocupam e ponham-se no meu lugar de professora. Permitam-me deixar a “modesta” de lado e apresentar-me: sou também professora concursada na Rede Oficial de Ensino de Sergipe há quase 22 anos, sou servidora pública e sempre tive a consciência de que devo estar a serviço da sociedade, fazendo o meu trabalho com responsabilidade e compromisso, aonde for necessário. Fui até o Timor Leste, país asiático arrasado por uma ocupação militar sangrenta que durou quase duas décadas e meia, levar a minha contribuição à reconstrução do Sistema Educacional daquele país, como professora formadora de professores, integrando por seleção pública realizada pela CAPES/MEC, a primeira Missão de Cooperação Técnica Internacional do Governo Brasileiro na área da Educação. Nunca escolhi escola para trabalhar. Trabalho em escola central, em escola de periferia, em qualquer bairro da cidade. Já trabalhei vários anos em escola situada na periferia de Aracaju, e gostei, criei identidade com as famílias dos meus alunos. Autorizo qualquer interessado a buscar informações sobre o meu desempenho profissional em escolas que já trabalhei (no interior e na capital) e nas quais trabalho hoje.
Sou filha de um trabalhador nordestino que não teve o direito de sentar em um banco escolar, e de uma trabalhadora que esteve na escola somente por 02 anos, e que sonhava formar-se professora, mas sendo filha de trabalhador rural, que plantava roça de subsistência em terras alheias emprestadas (dos latifundiários), a minha mãe jamais realizaria o seu sonho. Tornar-me professora concursada da Rede Estadual, aos 19 anos foi uma conquista de significação imensurável, não apenas para mim, mas especialmente para minha mãe. Fui à primeira da minha família a conquistar um diploma de escolaridade superior, e na Universidade Pública. Sou cumpridora dos meus deveres profissionais, mas sou também inquieta e “desobediente”. Autoritarismo na relação de trabalho é algo que me afeta profundamente e algo que tenho muita dificuldade em “aceitar” conformadamente. Tenho a preocupação de não deixar esse texto “piegas”, mas diante da mecanização/deterioração, diante da indiferença, e às vezes até de certa agressividade (na forma de documentos que chegam à escola) estabelecida nas relações de trabalho, entre Gestores Públicos e Profissionais da Educação, senti necessidade de abordar sonhos e sentimentos, elementos próprios da natureza humana e que, portanto precisam ser lembrados e considerados na hora da tomada de decisões pelo “poder central” e no encaminhamento dessas para a escola. Esse tipo de relação nada tem acrescentado ao trabalho realizado na escola, muito pelo contrário, vem prejudicando o bom andamento do mesmo, criando um clima de animosidade e descrédito que distancia ainda mais, os gestores de quem está na ponta do Sistema, comprometendo os resultados que se espera alcançar.
A minha concepção de mundo me diz que para além de toda “modernidade” tecnológica colocada à disposição das pessoas, de toda parafernália de equipamentos, que em certo contexto mais afasta do que aproxima seres humanos, pois artificializa o contato e as relações sociais – que o ser humano busca e necessita da conversa com o outro, precisa falar do que sente, precisa ouvir o que é importante, precisa olhar no olho do outro e enfrentar conflitos a partir do diálogo respeitoso, corajoso e ético. É necessário fazer a crítica, mas é também necessário e importante reconhecer as experiências do outro, reconhecer e valorizar o trabalho profissional. Na condição de professora sinto a necessidade de ser a autora do meu fazer pedagógico, de construir e reconstruir a minha prática e de ter a qualidade do meu trabalho avaliada com respeito e seriedade. Acredito que assim contribuo para alargar e fortalecer relações humanizadas e conseqüentemente ajudar a fazer o mundo um pouco melhor para todos nós. Essa é a crença que fundamenta a minha prática pedagógica na escola, a minha relação com as colegas, com os meus alunos e no dia a dia da minha vida.
Solicito apoio concreto da SEMED para “resgatar” as crianças, cujas mães foram impedidas de efetuar matrícula na EMEI Áurea Zamor pela demora com que a diretriz (abrir matrícula para 06 anos) chegou à escola. Sei que são muitas atividades para o setor responsável, a Rede é complexa, mas a falta do encaminhamento em tempo hábil por parte da SEMED causou prejuízos a mim, na condição de professora, as crianças que não puderam continuar na escola na qual já estudavam, e também ao próprio Sistema Municipal de Ensino, que “perdeu” alunos na sua matrícula/2010. Não posso ser “penalizada” por esse fato, sendo obrigada a buscar outra escola para exercer o meu direito de trabalhar e após o encerramento do período regulamentado pela própria Secretaria de Educação para a transferência dentro da Rede Municipal.
Não há justificativa para o “atraso” visto que a SEMED conta com uma equipe de assessores com excelente nível de formação acadêmica e vasta experiência profissional no campo da educação, inclusive na Rede Municipal de Aracaju.

Apelo aos senhores que garantam o meu “Direito de Ensinar” na EMEI Áurea Melo Zamor, ajudando a recuperar a matrícula que foi “perdida”, colocando as crianças de volta na sala de aula, que por ora, encontra-se vazia.
Enquanto salas de aula estão vazias, as crianças podem estar por aí, em casa de vizinhos para que as mães possam trabalhar, nos semáforos, na porta de mercadinho do bairro, ou seja, expostas a todo tipo de risco físico, moral e emocional, quando deveriam estar na sala de aula, desenvolvendo o seu potencial intelectual, aprendendo a formar bons valores, aprendendo regras sociais, tendo convivência coletiva escolar, através de diversas atividades e exercícios lúdicos de aprendizagem, para se formarem sujeitos emancipados.

Quero somente continuar exercendo a minha atividade docente na mesma escola. Para tanto, preciso dos meus alunos de volta. É mister contar com o apoio dos senhores para concretizar tal tarefa. Fosse minha vontade sair da EMEI Áurea Zamor, teria encaminhado requerimento a SEMED no período regularmente estabelecido para transferência dentro da Rede, que já foi expirado em janeiro passado.

Esperando contar com a compreensão e apoio efetivo dos senhores, despeço-me, apresentado votos de respeito e sempre a disposição para o que se faça necessário.

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